segunda-feira, 31 de agosto de 2015

O Beijo Azul

O beijo azul

Demasiado emburrado com toda situação, Johnny, no ápice de sua deselegância, levanta-se da mesa e com um grito oriundo de suas mais profundas entranhas amaldiçoa sua vida pregressa, presente e futura. Um devaneio, visto que o futuro ainda inexistia e o passado era, naqueles dias, meros borrões sem sentido algum.
Todos os presentes à gloriosa reunião ficaram atônitos, desconcertados e por isso tiveram distintas reações: Fifi, o gato, correu pelo corredor como se a própria Morte dos gatos a tivesse convidado para um passeio nos campos do além. Já Carlos, o Chacal, como era conhecido seu westie terrier de 28 centímetros, após um salto, ou queda, da mesa de jantar—sim, ele estava em cima da mesa—começou a latir torrencialmente contra os tornozelos de seu companheiro de quarto e logo seus chinelos, como de costume, foram atacados pela sede mortal do pequeno Carlos. Virgínia, a única presença feminina do recinto, uma serpente de raça desconhecida, presente de um velho conhecido de origem um tanto quanto duvidosa também, com sua pomposa realeza, ficou inerte em sua indiferença habitual. A última presente à mesa não resistiu ao ataque de fúria de nosso herói e pulou da mesa se jogando ao chão e, antecipando a despedida, foi-se esvaindo pelos ladrilhos gelados da sala de estar. A garrafa de conhaque chegara ao fim.
Naquele momento, Johnny parecia não se preocupar com mais nada, mas a retumbante verdade era que ele se afligia com todos e com tudo ao seu redor. Desde os problemas de perseguições de minorias étnicas nos confins do mundo até as pequenas aspirações diárias de sua perturbada mente. No calor de todo seu infame questionamento ele escreveu um bilhete de despedida aos seus colegas de quarto, pois sabia que eles não podiam ler, mas que entenderiam fielmente, como companheiros leais que são, as razões de sua derrocada:

Como concluir algo verdadeiramente concreto?
Como chorar perante o belo se o triste me persegue?
Como viver o cotidiano preenchido de passado e iludido pelo futuro?
Como são afinadas e inócuas as perguntas!

Dito isto...
Despeço-me de ti, querida vida
Sonha comigo, quando estiveres só.

Dito isto, novamente -- Johnny gostava de repetir seus pensamentos mais escusos em voz alta, não se sabe exatamente o porquê –, ele fez pela última vez o ritual de despedida junto de seus amigos, que consistia em uma derradeira troca de juras fraternais de amor e, lógico, alimentá-los. Fifi, o mais sábio entre eles, fez-se, depois do susto inicial, indiferente perante as anarquias de Johnny. Contentou-se com seu leitinho morno e, sem ao menos um miado de despedida, pôs se a dormir tranquilamente. Virgínia, a serpente, que herdou o nome de um antigo amor de Johnny, depois de ter sua fome devidamente saciada, no último adeus, após a derradeira tentativa de demonstração singela de carinho que há tempos não compartilhava com ela, nosso herói quase teve ali mesmo decretado seu fim. Virgínia, a serpente, que habitualmente se colocava naquela perigosa e irresistível posição que lembrava as najas indianas mortais quando queria alguma coisa, desta vez resolveu ataca-lo. Mirou, exatamente, as veias grandes e azuis que cintilavam nos pulsos de Johnny. Errou. Isto já havia acontecido antes, nos casos em que o bote era certeiro, Johnny logo se locomovia ao Seu Isaías e ele cuidava de tudo, o velho tinha a fórmula especial. Virgínia, a serpente, parecia venenosa, mas sabe-se que não era, apesar de sua mordida ser bastante doída, sempre lembrava Johnny. Por fim, Carlos, o Chacal, depois de devorar sua comida impacientemente, como era de costume, foi novamente na direção dos tornozelos de Johnny, porém, desta vez não sofreram apenas os chinelos, o pés foram atacados assim como suas mãos ao tentar afastá-lo. Johnny previa esta reação de seu companheiro, então, logo se pôs a sair da casa com apenas sua velha roupa, chinelos mordidos, e vários arranhões, estes visíveis na sua maltratada pele, e feridas, estas aparentemente invisíveis, mas latentes em seus olhos cansados.
Ao sair para a rua, após trancar a porta, Johnny se vira para o mundo e de olhos fechados, como manda a cartilha dos velhos filmes românticos, respira fundo, sente a brisa leve abarcar em seus machucados e navegar por entre seus cabelos. Ao abrir os olhos, vê na sua frente uma das mais raras e corriqueiras visões de um dia comum. Uma pequena borboleta azul pairando perante seu ser. Por reflexo, ele se esquiva fazendo movimentos para afastá-la, ele tenta se esgueirar da beleza simples natural que vê diante de si. Ele não gosta de borboletas, ainda mais azuis. De tão rara simplicidade e eterna sutileza, este ser que encanta o mundo o assusta mortalmente, ele sente que precisa se afastar, ele tem afazeres a cumprir. Mas a borboleta é sagaz. Desvia-se das investidas do velho rapaz e singelamente, com a sua ternura impecável, o beija por cima das mãos e vai embora. Johnny a vê ir lentamente por entre as fumaças cinzas do dia a dia. Enfim, a aceita.
Johnny, depois de alguns segundos, minutos, horas ou anos parado, não se sabe ao certo, volta a caminhar. Na esquina de sua casa, avista Seu Isaías varrendo a porta da mercearia e de modo aparentemente involuntário, com a mão há pouco beijada, acena para o senhor do outro lado da rua com um sorriso há muito não utilizado. Num primeiro momento, o fato estranhou não apenas nosso herói mas também ao seu Isaías. Este acostumado com a arrogância sentimental e com o sofrimento febril das visitas pós mordida de Virgínia. E aquele, ainda atônito, não sabendo ainda se era ele mesmo o autor daquela delicadeza esquecida. Mas sim, era ele. Ele mudara. O beijo azul o estava libertando.
E foi atravessando por entre becos escuros e úmidos que encontrou a redenção. Sua mente e corpo se fundiram novamente. E esgueirando-se por entre latas de lixo, quinas mijadas e outros animais abandonados se encontrou livre das amarras frouxas a que estava preso. Gritou alto como grita uma alma aprisionada num corpo indiferente. E, assim, foi aplaudido por todos. Cães, cobras, gatos, homens e mulheres o aclamaram como um ser vivo livre, recém-chegado, novamente, a vida.


Por Guilherme Ladenthin





quinta-feira, 20 de agosto de 2015

Hoje é terça sim

Terça Tilt. São nove horas, e eu acabei de chegar. Hora de pedir uma Heineken – a breja mais cara da balada, e também a mais gostosa. Esse é um dos motivos por que venho sozinho à Tilt – tomo, solo, minha Heineken de 600. Ninguém mais. É a medida ideal da cerveja. E como tá gelada, rapaz! A verdinha vem um tanto branca, e quando a coloco na camisinha, a felicidade me sobe.
Pensa só: é terça-feira, terça sim! Hoje é o dia que o Sato toca, que danço sozinho, olho pras meninas, e elas olham pra mim. Eu fecho os olhos, e inspiro-me. Vivo a Terça Tilt pelas próximas duas semanas. Amanhã ainda a sentirei dentro de mim – meu corpo não será o mesmo de hoje. Tudo válido. A Terça Tilt compensa. Olha só, fui olhar a garrafa e ela está exatamente onde pensei: na metade.
Ainda não sinto aquilo tudo que posso, mas sei que está prestes. Nem essa garrafa vai terminar, e meu corpo já estará leve, e minha cabeça no céu. Meu coração, este tem de esperar mais um pouquinho. Mas é só um pouquinho, até a discotecagem começar – um pontapé nas portas da afetação. Galera espalhada, e ao som do amor, flores desabrocham pelo jardim da terça londrinense. Ai de quem perde.
Na casinha, o barulho só que cresce. Quer saber? Não vou nem olhar mais pro lado que é pra não ter de cumprimentar ninguém. Rapaz, o Ivanzinho, meu brother que trampa de garçom aqui, me deu mais uma pilha de papel. Agora eu vou embora... e sabe aonde queria chegar? Sabe?
Um cara que sai de terça-feira, bebe sozinho, fica pensando no quê? Que não consegue ficar em casa e abandonou de vez os programas cinéfilos de sua vida? Essa vontade de amor pega mais embaixo...
É o que todos nós temos. Mesmo o mais bem resolvido da autoconfiança e do desapego quer um amor pra sua vida, desses de contos de fadas, mesmo que não seja. Rapaz, a sensação de olhar praquela pessoa e entrar em outra – dimensão, mundo, atmosfera -, é demais da conta.
Vejo que já estou mais solto na escrita. Só quero ver como será na edição. Hemingway diria: “escreva bêbado, edite sóbrio”. Percebo, meu estado já mudou. Heineken é foda, cara. Uma e você já cambaleia legal. Na Tilt isso é um perigo.
- Será que é hora de dar uma olhada? – penso. Sei lá, daqui a pouco largo isso aqui e corro dar um giro no bar. E olha, rapaz, a menina que tá ali no balcão é bonita, irmão. Bastante, ainda. Não tava dando pra ver, tava escuro. Bom é que ela deve tá achando que eu sou um escritor, um cara foda, que...
Péra! Sentou uma do meu lado. E outra do lado dela. Será que não podiam sentar pra lá? Será que eu escrever chamou sua atenção? Acho que sim. Sabe quando sente a energia da pessoa? Mesmo ela de costas pra mim, como está agora. Mais um golinho, peraí.
E a menina que pediu a bebida não saiu dali. Meu Deus, quanta mulher me cercando! Ao menos é o que quero pensar, já que tô aqui vidrado nesse papel. E tá ficando cada vez mais difícil, devo dizer. Não sei o que tá rolando em volta. Só ouço a gritaria. O barulho é sempre grande na Tilt.
Nossa! Cara! Como mudou a casinha! Agora já tá cheia. Todas as mesas estão ocupadas. Lá dentro deve tá abrindo. Olôco! Um grupo de meninas aqui do lado foi pra pinga! Cara, não vai dar. Depois eu continuo isso aqui, agora tá foda.
(Deu nem pra se despedir).

Hoje é terça de novo, dia 18. Exatos 14 dias depois. Já sabe, né? Terça sim, mermão! Hoje tem Terça Tilt! Quinze dias depois, é hora de voltar à pista da afetação. Já marquei com bons amigos, e às nove tomamos o rumo – o carro já vai sozinho. Ah!, cada Tilt é uma nova história. Que festa! Hoje não estou tão empolgado. As meninas dos meus olhos não estarão lá – noventa por cento certo. Putz, isso diminui em um monte a graça do troço.
Ah, semana passada me dei bem com a mina do balcão! Mas olha como são as coisas, o romance durou dias e já se perdeu pelo não-completo do sentimento idealista. Ou simplesmente porque não bateu, mesmo. Mais comum do que não, né? Tudo certo. Hoje é vida nova.
Não consigo mesmo fugir das meninas que habitam meus pensamentos enquanto escrevo essa crônica cara-de-pau! Puta, elas podiam estar lá hoje, né? Uma, pelo menos. Elas é que são a graça de tudo, e pra ter uma que compita com essas, meu caro, vou te falar... tem que estremecer o peão aqui. Mas na Tilt, brow, tudo é possível.
Só te peço um negócio, então: torce por mim. Torce pra eu esbarrar uma menina linda, e depois fazer seus olhos fixarem em mim. Vou perguntar se quer tomar um copo da breja que eu peguei. Ela vai aceitar, pois não tem frescura, nem vai achar que tá me dando muito mole por isso. Aí, mais pro fim da noite, umas duas e tanto – o papo foi bom demais e a gente alongou a estada no Valeco -, nosso beijo doce valerá todo meu esforço e atenção. É desse jeito sim, irmão. Você se esforça, busca; atrapalha-se nas próprias qualidades, mas segue. Os defeitos, encubro. Claro, pô! O jogo do amor é o único onde vale golpe baixo, brow.
Amanhã, na quarta pós-tilt, queira me ver cantando. Por dentro, digo, com tudo que rolou na noite anterior. Porque aí, rapaz, meus dias serão muito mais felizes, e o sentido que tanto procuro virá de lancha do horizonte pra cá. No mar do Valentino, às terças à noite e quinzenalmente, iço bravamente as velas do meu destino. O vento sopra a favor – o som, os astros, a terça, e muita, muita beleza e vida que compõem o habitat dos afogados no amor.

Dear Valeco: quando eu não estiver mais nessa, lembra de mim! Dos tantos motivos que me fizeram voltar às tuas dependências! Recorda-te do meu amor, dessa fidelidade infindável, um devotamento ímpar, você sabe. Lembra o quanto o levei em minha estima. Estou em tua história! Sonho meu não é ficar aí pra sempre, por isso vivo tanto você. Não sei até quando. Mas hoje, posso dizer: é terça sim, e enquanto uma das tuas flores não me fizer mudar de ideia, deixa o teu balcão reservado pra mim, por favor.